domingo, 1 de fevereiro de 2009

50 anos da Nouvelle Vague-II

FONTE:Estadão 01/02/2009

Da cinefilia à política dos autores
Para eles, é a forma e não a natureza do tema que definia a visão de mundo de um cineasta

Quando lhe perguntaram qual era a diferença entre eles, jovens da nouvelle vague, e a geração anterior, Godard respondeu: "Eles bebiam e jogavam cartas; nós preferimos o fliperama." Aliás, o gosto pelas maquininhas de jogos, que não faltavam nos bares de Paris nas décadas de 50 e 60, era apontado como único traço em comum entre os cinco nomes principais da nouvelle vague: Jean-Luc Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Eric Rohmer e Jacques Rivette. Tirando a inclinação para o fliperama, cada um deles tinha um gosto diferente e uma maneira particular de encarar o cinema.Piadas e frases de efeito à parte, com 50 anos de recuo parece óbvio que muitas coisas mais havia em comum entre os membros do grupo, além do prazer de praticar o joguinho eletrônico, importado dos Estados Unidos. Mesmo porque o fliperama não era a única referência norte-americana entre os membros do grupo. Como se sabe, os então críticos da revista Cahiers du Cinema tanto repudiaram o "cinéma de qualité" da geração anterior como se aproximaram do cinema americano, em especial de "autores" como Alfred Hitchcock (que, apesar de inglês, fazia carreira nos EUA) e Howard Hawks.O fato é que a nouvelle vague (expressão criada pela jornalista Françoise Giroud, da L?Express) se definia, primeiro, por uma série de recusas - o cinema de qualidade, de expressão literária, e, em seguida, por algumas afinidades; além de um certo cinema americano, os franceses Jean Renoir e Jean Vigo. Além disso, todos, antes de se tornarem diretores, haviam exercido a função de críticos e haviam passado pela escrita e pela reflexão antes de pegar uma câmera. Eram cinéfilos, muito bem informados da história do cinema, críticos e irreverentes. Havia ainda o dado geracional. Queriam cavar uma posição no cinema francês e não viam tática melhor do que demolir a geração que ocupava o poder. De certa forma, foram bem-sucedidos nessa revolução que, como todas elas, provocou algumas injustiças e cabeças cortadas. Cavaram seu espaço, à custa de uma ruptura traumática com o passado, e se transformaram num dos movimentos mais influentes do cinema moderno.Mas a nouvelle vague chegou a ser mesmo uma "escola", no sentido mais comum do termo? Nada mais incerto. O termo "escola", de ressonância mais literária que cinematográfica, implica alguns pontos, como a publicação de um manifesto, a formação de um grupo com ideário estético, suporte editorial (revista ou jornal para dar publicidade às ideias), um líder e adversários. A nouvelle vague teve alguns desses aspectos, outros não. Em obra recente de balanço, Que Reste-t-il de la Nouvelle Vague (Aldo Tassone, ed. Stock), a resposta mais frequente dos entrevistados é que ela foi mais uma revolução técnica e de produção que estética, propriamente dita. Influenciados pelo artigo de Alexandre Astruc, La Caméra Stylo (1948), os novos cineastas conceberam o cinema como dispositivo tão leve e prático quanto um caderno de notas e uma caneta. Tiraram o cinema dos estúdios e o levaram às ruas, valendo-se de equipamentos leves. Por fim, subverteram a hierarquia do cinema francês, na qual o aspirante a diretor deveria começar como segundo assistente, ir galgando posições numa escalada lenta até chegar a dirigir seu primeiro filme, em geral com 40 anos de idade. Os "jovens turcos" dos Cahiers mostraram que era possível e desejável queimar etapas.Por outro lado, basta pensar na obra dos cinco principais nomes da nouvelle vague para duvidar de uma estética comum. Aliás, é mais fácil encontrar diferenças que semelhanças entre Godard, Truffaut, Rohmer, Chabrol e Rivette. Cada qual fez o seu caminho. Truffaut, o mais violento e polêmico entre eles, reconciliou-se mais tarde com um cinema de feitio clássico, embora jamais acadêmico. Em contraposição, Godard foi o mais criativo entre todos e estabeleceu para sua obra um programa de revolução permanente. Foi também o mais político, enquanto os outros eram comumente tachados de alienados, ou indiferentes, ou mesmo "anarquistas de direita", conforme o jargão francês. Chabrol admite francamente que a nouvelle vague pode ser definida como um neorrealismo sem o aspecto social: "A simples estética do neorrealismo nos bastava, sem que houvesse necessidade da mensagem", diz ele em entrevista a Tassone. Rohmer não deixa por menos e admite que foram indiferentes às grandes questões políticas do seu tempo: "A guerra da Argélia não passa pelos nossos filmes." Com exceção do Godard de O Pequeno Soldado, é bom lembrar.Essa indiferença pela política repercutia na luta entre as duas revistas, a "alienada" Cahiers du Cinema e a engajada Positif, alinhada às ideias de esquerda. Inclinados à cinefilia, os jovens diretores se preocupavam mais com a forma e com a linguagem cinematográfica do que com o "conteúdo". A exceção era, mais uma vez, Godard, que sentia remorsos e ficava incomodado com essa apatia social. Sua guinada ao maoismo pode ser entendida como reação a essa primeira fase apolítica.No entanto, essa preocupação obstinada com a forma rendeu frutos e talvez seja a herança teórica maior da nouvelle vague. O que ela quer dizer? A "moral" de um filme está toda contida em sua forma - nos movimentos de câmera, nos enquadramentos, na fotografia, enfim, nos termos da linguagem cinematográfica. Quer dizer, na mise-en-scène, na direção, que expressa a visão de mundo do autor. Essa aquisição, por óbvia que hoje pareça, não o era na época; prestava-se mais atenção na nobreza do tema, ou no prestígio da fonte literária, do que nos meios buscados para realizá-los. Hoje, qualquer cineasta, ou crítico que se leve a sério, sabe que o que importa é como as questões tratadas se afrontam na linguagem cinematográfica. O que não significa uma atitude de bela indiferença diante do mundo real, muito ao contrário.

Cronologia

1959-Os Incompreendidos dá a Truffaut o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, lançando oficialmente o núcleo-base da nouvelle vague: Truffaut, Claude Chabrol, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer e Jacques Rivette. São todos críticos da conceituada revista Cahiers du Cinéma.

1960-Acossado, um roteiro original de Truffaut filmado por Godard, é lançado no mesmo ano de A Doce Vida, de Fellini, fazendo por Paris o que o cineasta italiano fez por Roma, ao ambientar nas ruas da capital francesa o romance marginal de um ladrão de carros com uma americana .

1962-Truffaut lança, em Paris, seu filme mais popular, Jules e Jim, história de dois amigos apaixonados pela mesma mulher no começo do século passado. O filme, acusado por alguns críticos de misoginia, conquistou o publicou europeu e americano, transformando a atriz Jeanne Moreau na musa da nouvelle vague francesa.

1963-Godard lança seu libelo antibélico, Tempo de Guerra, que o define como a voz política do movimento, mais tarde radicalizando suas posições em A Chinesa (1967), inventário precoce da geração de maio de 1968. Ele também falou da guerra da Argélia em O Pequeno Soldado (1963).

1964-Godard faz um dos cem melhores filmes de todos os tempos, segundo a revista Time, Bande à Part. Filme favorito de Tarantino (Pulp Fiction), é uma obra que presta homenagem às produções B de Hollywood, ao tratar de um trio de amigos que planeja um roubo por diversão.

1966-Jacques Rivette choca a França com sua adaptação de A Religiosa, de Diderot, fazendo a bela Anna Karina sofrer como uma jovem freira perseguida por superioras sádicas. O filme sofreu perseguição dos censores franceses e foi proibido em vários países. Rivette coloca, segundo alguns, o ponto final no movimento.

Os Diretores

FRANÇOIS TRUFFAUT (1932-1984): Obra de caráter autobiográfico, na qual seu alter ego Antoine Doinel é interpretado por Jean-Pierre Léaud. Atire no Pianista, a série Doinel (destaque para Beijos Proibidos), além de A Noite Americana e O Menino Selvagem são seus principais filmes.

ÉRIC ROHMER (1920): Seu verdadeiro nome é Maurice Schérer, um autor que organiza filmes em séries, como a dos Contos Morais e Contos das Estações e Provérbios. São filmes de uma agudeza extraordinária, simples apenas em aparência. Alguns dos principais: O Joelho de Claire e O Raio Verde.

JEAN-LUC GODARD (1930): O grande inventor do grupo, aquele que mais força, até hoje, os limites da linguagem do cinema. Acossado, seu primeiro longa, foi uma revolução. Mas talvez O Desprezo seja o mais amado, embora Viver a Vida, A Chinesa, Alphaville e Pierrot le Fou sejam também citados.

CLAUDE CHABROL (1930): Autor do primeiro longa-metragem do grupo, Nas Garras do Vício, lançado em 1959. Bastante influenciado por Hitchcock, é um refinado pintor do ambiente burguês. Alguns títulos preferenciais: O Açougueiro, Mulheres Diabólicas, Ciúme, e o recente A Comédia do Poder.

JACQUES RIVETTE (1928): Estreou em 1960 com Paris Nous Appartient, mas ficou conhecido pela proibição da censura ao seu segundo longa, A Religiosa, adaptado de Diderot. Gosta da lentidão e da profundidade em filmes como A Bela Intrigante e Va Savoir.Os atores

JEAN-PAUL BELMONDO (1933): Um dos rostos mais associados à nouvelle vague, é protagonista de dois dos mais conhecidos filmes de Godard, Acossado e Pierrot le Fou (O Demônio das Onze Horas). Trabalhou também com Truffaut, Resnais, Chabrol, Agnès Varda e Claude Lelouch.

JEAN PIERRE LÉAUD (1944): Trabalhou com Truffaut da infância à maturidade na série Antoine Doinel. Mas atuou sob o comando de Godard em A Chinesa, Week-End à Francesa, Masculino-Feminino e Detetive. É protagonista de La Mamain et la Putain, de Jean Eustache, herdeiro da nouvelle vague.

JEANNE MOREAU (1928): É uma das atrizes francesas de maior repercussão internacional. Na nouvelle vague, seu papel mais conhecido é em Jules e Jim, de Truffaut. Trabalhou também com Louis Malle, Jacques Démy e Antonioni. Veio ao Brasil em 1972 para filmar Joana Francesa com Cacá Diegues.

JEAN SEBERG (1938-1979): Nascida nos EUA, viveu o principal papel feminino em Acossado. Como Patricia, jovem que tem um caso com o malandro Michel Poiccard (Belmondo), entrou para a história do cinema. Foi encontrada morta, em Paris, dentro de um carro, vítima de overdose de sedativos.

ANNA KARINA (1940): Nascida na Dinamarca, converteu-se em uma das principais atrizes da nouvelle vague. Intérprete-fetiche de Godard, com quem foi casada, está em filmes como Pierrot le Fou e Uma Mulher É Uma Mulher. Seu maior papel é o da prostituta de Viver a Vida.

A Onda que chegou ao Brasil:

CACÁ DIEGUES: "A nouvelle vague foi muito importante para toda a minha geração de cinéfilos e cineastas. Eles mudaram a história do cinema fazendo de um modo de fazer, linguagem. É claro que ela é basicamente filha das ideias do neorrealismo italiano e, sobretudo, dos filmes de Rossellini, mas acrescentou a isso uma visão mais contemporânea do cinema e do mundo. Em termos ideológicos, a nouvelle vague era o gaullismo (de De Gaulle) no cinema, uma atualização com a recuperação e modernização da França do final dos anos 1950, com o apoio irrestrito do ministro da cultura, André Malraux, que entendeu como ninguém a necessidade daqueles filmes para recuperar o orgulho e o prestígio cultural francês perdido com a guerra. Pouca gente, no entanto, percebeu a igualmente decisiva modernização tecnológica que a nouvelle vague representou para o cinema mundial - o fim da ditadura dos estúdios, o uso de câmeras mais leves, a luz natural substituindo os velhos refletores, a hegemonia do TRIX, novo filme da Kodak, mais sensível, os gravadores portáteis de som direto. Sem esses avanços tecnológicos, o programa da nouvelle vague não seria viável. E, sobretudo, a liberdade de grafia e dicção não seriam jamais aquela, uma invenção permanente de elipses, falsos raccords, decupagem no interior dos planos, atores desconstruídos, etc. Isso lhes permitiu a dramaturgia mais leve e menos teleológica, sem as velhas regras do cinema americano. Para a nouvelle vague, como dizia David Neves, o cinema era uma aquarela e não um bronze. Nós, brasileiros, não fomos assim tão influenciados por seu romantismo parisiense, um existencialismo romântico filtrado por Rossellini e por americanos de exceção (Welles, Hitchcock, Hawks, Nick Ray, etc.). Mas o modo de fazer da nouvelle vague e sua teoria da "política de autor" (Bazin e Truffaut) foram fundamentais para a existência do Cinema Novo, de certo modo viabilizaram com seu exemplo a nossa produção. Depois do neorrealismo italiano, fundador do cinema moderno, a nouvelle vague foi o acontecimento mais importante para a difusão e consolidação de cinemas nacionais pelo mundo afora, dos quais o Cinema Novo foi um precursor."

CARLOS REICHENBACH: "Tenho a impressão que o Cinema Novo foi tão influenciado pela nouvelle vague como foi pelo neorrealismo italiano. Afinal, um de seus "inventores", Pierre Kast, conviveu com a confraria e até fez filmes por aqui. A geração 68 (leia-se o cinema brasileiro pós-64, para não falar aquele termo terrível - marginal) foi, com certeza; especialmente pelo Godard da primeira fase. Um filme marco na nouvelle vague - e que me marcou muito - foi Amor Livre (L'Eau à la Bouche), de Jacques Donoil-Valcroze (com seus enormes travellings circulares em torno de um casal fazendo amor, ao som de Jesus, Alegria dos Homens, de Bach). Valcroze foi uma influência fenomenal na minha geração, porque foi editor do Cahiers du Cinema, nos anos "editor " Valcroze e do "aventureiro" Godard. Lembro muito bem da voracidade com que devorávamos (Rogerio Sganzerla, João Callegaro, Jairo Ferreira, Carlos Ebert e eu) o exemplar mais recente do Cahiers, assim que ele chegava tinindO na Livraria Francesa, da Barão de Itapetininga. De Valcroze e Godard eu detecto - especialmente - meu fascínio pessoal pelo cinema B e independente americano, especialmente Samuel Fuller, Nicholas Ray, Joseph H. Lewis e Edward Ludwig (de quem - especialmente em The Last Gangster - Godard foi buscar inspiração para filmar Acossado). Amor Livre (Valcroze), Os Incompreendidos (Truffaut), Acossado (Godard), Nas Garras do Vício (Chabrol), Trinta Anos Esta Noite (Malle), O Pequeno Soldado (Godard) e o esquecido e belíssimo Le Soleil Dans L"Oeil, de Jacques Bourdon, foram filmes essenciais na minha formação. De alguma forma, todos esses filmes buscavam sentido e poesia na deriva e no inconformismo."

WALTER SALLES: "Para toda uma geração, a nouvelle vague foi o início, o meio e o fim... uma verdadeira revolução na maneira de ver, pensar e fazer cinema, não só estética, mas também ética. Sintomaticamente, a nouvelle vague foi conclamada por um crítico (Bazin) e instaurada por cineastas críticos que militavam no seio dos Cahiers, como Truffaut, Godard, Rohmer, etc. O movimento foi de tal forma marcante que ele ultrapassou o território do cinema e balizou toda a discussão intelectual da época. Um exemplo: na escola onde eu estudei em Paris em 68 e 69, existiam dois cineclubes rivais: o primeiro dedicado a Godard, o segundo a Truffaut. Você tinha de escolher um dos dois lados, como se torcesse pelo Santos ou Corinthians - isso, aos 12, 13 anos de idade. Eu gostava tanto de Godard quanto de Truffaut e acabava frequentando discretamente os dois. Era uma época em que um filme incandescente como Pierrot le Fou era esperado com ansiedade meses antes do lançamento. Pierrot le Fou fez quase 2 milhões de espectadores, mas isso não virava o foco da discussão. Afinal, era uma época em que se falava de ideias e não da bilheteria dos filmes. Os filmes importantes eram aqueles que geravam debates nos cafés e nos bares, que reinventavam um presente, que criavam uma memória coletiva. Isso foi bem antes de Tubarão, do advento dos blockbusters, do marketing e da indústria das celebridades. Bem antes de os filmes serem tratados como sabão em pó."

FERNANDO MEIRELLES: "Quanto à nouvelle vague, evidentemente, eu era espectador. Entrei na faculdade em meados dos anos 1970 e era isso que eu via. Nouvelle vague e malditos brasileiros. Depois o Jovem Cinema Alemão. Os filmes do Godard me impressionavam muito pela narrativa tão solta e tão cinematográfica. Filmes que me impressionaram: Acossado (e a refilmagem do Truffaut nos anos 80), Alphaville, Weekend, Pierrot le Fou, Salve-se Quem Puder, a Vida (adorava as frisadas nas cenas onde a personagem andava de bicicleta, cheguei a copiar isso em trabalhos que fiz). Dos anos 1980 para cá, ele parece que ficou mais chato, ou eu fiquei mais tolo e deixei de gostar tanto dos filmes que fazia. O Truffaut me parecia mais acessível e também me encantou em Atire no Pianista, Jules e Jim e, é claro, Fahrenheit 451. Me apaixonei pela Jaqueline Bisset em Noite Americana, adoro O Homem Que Amava as Mulheres. Nunca embarquei muito nos filmes do Chabrol e conheço pouco Eric Rohmer, de quem assisti pouca coisa e recentemente."

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